
A história que segue é pura ficção. Nunca ninguém se meteria no mar frio antes do nascer do sol só porque sim. Claramente, ninguém estaria lúcido o suficiente a essa hora para vestir um fato de neoprene meio húmido com aquela cara de quem tem saudades dum galão quente, e depois caminhar em direção à água como se fosse a coisa mais natural do mundo mergulhar no oceano que mais parece uma sopa gelada de água e sal. Quem é que faria isso em consciência?
Também é ficção total que alguém, enquanto dentro do mar, vá a pensar em tudo e em nada ao mesmo tempo. Que saltem pensamentos do jantar de ontem para aquele colega chato, passando rapidamente pelo aniversário do amigo, o filme que ficou a meio, e o estranho hábito que certas bóias têm de se afastar quando nadamos em linha reta. Não faz qualquer sentido que um cérebro esteja ativo nestas coisas enquanto o corpo desliza em braçadas quase automáticas.
Não é real isto de estar rodeado de dezenas, às vezes centenas, de nadadores e sentir-se completamente sozinho. É completamente ridículo imaginar que, mesmo com toda aquela gente, o mundo se reduza ao som abafado da respiração e ao ritmo das próprias bolhas. Como se dentro do mar cada um tivesse o seu filme a correr, e os outros fossem apenas ruído de fundo num oceano que não quer saber de ninguém e onde nós somos só passageiros temporâneos.
E claro que não existe esse fenómeno estranho de estarmos a nadar para a frente e parecer que estamos a recuar, com a ideia que se calhar estamos no sentido contrário da prova. Ninguém se deixaria iludir pela corrente, pelas marés, por aquelas águas invisivelmente teimosas que decidem que hoje não se avança. Mas ainda mais absurdo é achar que, de repente, com um micro-ajuste qualquer na direção, na cabeça ou sei lá onde, tudo muda. E sem saber bem porquê, o corpo e a água entram em acordo, e seguimos.
Imaginar que cortar a meta em terra firme se sente como um regresso à superfície depois de viver dentro de outro mundo, também é um exagero literário. Não há razão nenhuma para que um simples passo fora de água, na areia, na chegada da prova, traga essa explosão absurda de leveza. É só gente a sair do mar. Nada de mais.
E é claro que ninguém sente liberdade no mar. Onde já se viu? Ser arrastado por ondas, desorientado por bóias e lutando contra os ventos contrários é tudo menos liberdade. E mesmo assim, neste mundo inventado, há qualquer coisa naquele estado quase sem peso — onde os braços sabem o caminho e a mente se dissolve — que parece o mais próximo que já estivemos de sermos uma coisa só com o mar.
Chiara Bedini

